As concepções sobre o poder local no discurso administrativo português do liberalismo na 2ª metade do século XIX: os lentes da universidade de Coimbra.
Introdução
O objetivo principal deste trabalho foi analisar o pensamento sobre o poder local dos lentes de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra na segunda metade do século XIX. A pesquisa efetuada revelou três lentes principais que produziram manuais ou dos quais os alunos compilaram lições, a saber: Basílio Alberto de Sousa Pinto (1793-1881) e os seus Apontamentos de Direito Administrativo com referência ao Código Administrativo Português de 18 de Março de 1842, redigidos segundo as preleções orais do ilustríssimo senhor Basílio Alberto de Sousa Pinto feitas no ano de 1844 a 1845 (1849); Justino António de Freitas (1804-1865) e as suas Instituições de Direito Administrativo (1857 e 1861); e, por último, José Frederico Laranjo e os seus Princípios e Instituições de Direito Administrativo Português (1888 e 1894).
Esta análise tinha como objetivo uma compreensão holística do pensamento dos vários autores sobre a temática selecionada, mas foi orientada pela resposta às seguintes questões: qual o estatuto do poder local?; Que atribuições lhe são reservadas?; Que nível de autonomia vs subordinação do poder local ao central é definido?; Que relações se estabelecem entre o poder central e o pode local?; Qual o racional argumentativo empregue pelos autores na defesa das suas conceções?. No entanto, e porque este não é um trabalho de exegese jurídica, a análise não tentou interpretar o pensamento dos lentes à luz de determinadas correntes ou concepções de teoria e filosofia do direito.
A resposta a estas questões pode ser relevante sob diversos pontos de vista. Em primeiro lugar no âmbito da compreensão da construção e dinâmicas de funcionamento do Estado Liberal, particularmente no que concerne à existência de diversos níveis do exercício do poder em escalas diferenciadas do território e suas esferas particulares de ação, mas também relativamente às formas e processos de interdependência entre estes diversos níveis no estudo de fenómenos de cooperação, convivência harmoniosa ou de conflito. No âmbito da querela centralização / descentralização que perpassou por todo o século XIX português, é igualmente relevante conhecer o pensamento de um dos intervenientes neste processo – os professores de direito administrativo – na medida da sua intervenção sócio-política fora da Academia, mas também enquanto formadores de eventuais agentes do Estado. Analisar, dito de outro modo, a influência do pensamento destes docentes a vários níveis, entre os quais os dos decisores políticos e os dos agentes da administração, exigiria uma investigação bastante mais aprofundada do que a que estava prevista para este trabalho. Por último, uma compreensão mais aprofundada do pensamento destes lentes pode contribuir para a construção de uma teoria sobre o Estado Liberal em Portugal no século XIX.
No entanto, o aparecimento destes lentes e a sua produção científico-pedagógica tem, pelo menos, um contexto próximo que é necessário invocar e compreender para situar a sua emergência e produção. Estes situam-se dentro de uma determinada instituição, mas sobretudo inscrevem-se no contexto da construção de um ensino sobre Direito Administrativo em Portugal. Desta forma, o trabalho que se apresenta pretendeu integrar a emergência dos autores, e em certa medida, do seu pensamento no lento processo de afirmação do Direito Administrativo na Universidade de Coimbra.
- O ensino do direito administrativo e os seus professores na Universidade de Coimbra
1.1. A emergência tardia do direito administrativo como disciplina autónoma
O ensino de matérias de direito administrativo começa a ganhar, nas primeiras décadas do século XIX, alguma importância no quadro da formação das elites ao serviço da construção do Estado Liberal e surge, desde logo, nos anos trinta numa proposta do Conselho Superior de Instrução pública para a reforma dos estudos jurídicos datada de 1833. Como refere Ferreira a este propósito, “compreende-se (…) a pertinência que o ensino dessas matérias reveste no quadro da conjuntura política nacional, dominada por preocupações atinentes ao lançamento das traves mestras do sistema liberal, concernentes, em particular, à renovação do aparelho político-estatal, apetrechado com um funcionalismo público que alie fidelidade política e competência profissional” (2005, p. 96-97).
Na sequência destas preocupações, a reforma setembrista dos estudos jurídicos, que cria em 1836 a Faculdade de Direito, comtempla o ensino do direito administrativo no quadro do “alargamento e diversificação dos ramos do direito nacional” (Ferreira, 2005, p. 109), mas longe de o autonomizar. A sua leccionação é incluída no âmbito da cadeira de Direito Público Português pela Constituição.
No entanto, esta atualização e especialização do ensino jurídico que já tinha recebido alguma oposição por parte da Universidade será, nos anos seguintes, sucessivamente alterada através de propostas emanadas da Faculdade de Direito e aprovadas pelo Governo, que vão no sentido de recuperar o modelo inicial de organização proposto por esta. Este modelo representa a recuperação de uma visão mais tradicional no ensino deste campo do saber e traduz-se por um reforço das componentes do direito romano e direito canónico e uma desvalorização das disciplinas ligadas ao direito pátrio. Como sintetiza Ferreira sobre o significado destas alterações “a matriz clássica do ensino jurídico tende a ser restabelecida em detrimento dos territórios conectados com o domínio do direito público, que mais diretamente concorrem em prol das estruturas do Estado liberal.” (2005, p. 124).
A reforma cabralista de 1844 vai de encontro a estas propostas mais tradicionalistas da Universidade com uma ainda maior restrição dos conteúdos relativos a aspetos mais contemporâneos e de direito nacional. É neste contexto que, por exemplo, a cadeira de Direito Criminal perde autonomia pela inclusão no seu currículo das temáticas de Direito Administrativo. Esta situação manter-se-á até 1853, ano em que pela Lei de 13/07, finalmente este ramo do Direito ganha foros de cidadania através da criação da Cadeira de Direito Administrativo e princípios de Administração, resultado imediato de uma proposta de Basílio Alberto de Sousa Pinto, inicialmente rejeitada pelo Conselho da Faculdade com a argumentação da inexistência de base legal. No entanto, esta proposta dá origem a um pedido ao governo por parte deste mesmo Conselho no sentido da criação da nova cadeira, com base no argumento da importância do direito administrativo, embora reconheça a inexistência de produção científica portuguesa sobre este tema (Ferreira, 2005).
Esta evolução revela, assim, o confronto entre duas perspetivas: uma, a da Universidade, preocupada em privilegiar os saberes transversais ao campo jurídico, e outra, do poder político, tendendo para a diversificação desses saberes. Assim, “o processo paulatino da autonomização científica do Direito (…) irá realizar-se por via da reafirmação da unidade dos saberes que atravessam o território da formação jurídica e da sua demarcação face às eventuais investidas oriundas do campo do poder político em prol da especialização e segmentação dos estudos, no decurso do regime Constitucional-Monárquico.” (Ferreira, 2005, p. 133).
1.2. O episódio do Curso Administrativo
Embora cedendo à perspetiva da Universidade, tal não impedirá o governo de tentar impor a sua visão, o que se traduzirá, nomeadamente, na proposta de criação de uma Faculdade de Ciências Económicas e Administrativas em 1849, a qual receberá, por seu turno, a clara oposição desta, particularmente da Faculdade de Direito.
O domínio de Coimbra no Conselho Superior de Instrução Pública transformará esta proposta na definição de um Curso Administrativo, integrado na Faculdade de Direito. Como de alguma forma seria de esperar, os temas do direito predominam em desfavor de propostas feitas pela Faculdade de Filosofia que davam uma maior relevância a aspetos das ciências naturais. Assim, como sintetiza Ferreira, “o ensejo reformador salda-se (…) na re-afirmação da centralidade do saber jurídico, negligenciando-se as motivações que estão na origem da citada proposta oriunda da órbita das ciências científico-naturais. E a prová-lo encontra-se o teor da solução projetada, que aponta para a instituição de um curso de ciências políticas e administrativas em que aquele fica, de facto, subordinado ao prisma jurídico.” (2005, p. 157-158).
Finalizada a proposta para a criação do Curso pelo Conselho Superior de Instrução Pública em 1850 e apesar dos ingentes pedidos deste órgão para a sua criação e regulamentação, tal só acontecerá respetivamente em 1853 (Lei 13/07) e em 1854 (Dec. 06/06), porque a Faculdade de Direito sempre fez depender a sua concretização da criação da cadeira de Direito Administrativo no currículo do curso de Direito, o que, como se viu, só aconteceu no segundo semestre de 1853. Quer na Lei de 53, que no Dec. de 54 está bem explícito o fim último a que se destinava o curso Administrativo, exatamente para “habilitação dos candidatos aos empregos da Administração” (Dec. 06/06/1854).
Com uma duração 3 anos, o Curso Administrativo compunha-se de nove disciplinas: três pertencentes à Faculdade de Filosofia e seis à Faculdade de Direito. O 1.º ano compunha-se de: “Princípios de Física e Química”; “Direito natural e das gentes”; e “Estatística, Economia Política e Legislação sobre a Fazenda”. O 2.º ano compreendia: “Mineralogia, Geologia; Arte de Minas e sua Legislação”; “Direito Publico Universal, Direito Publico Português, Princípios de Política, Direitos de tratados de Portugal com outros países, Ciência da Legislação”; e “Direito Civil Português”. O 3.º ano incluía: “Agricultura, Economia e Legislação Rural”; “Direito Criminal Português e Comparado”; e “Direito administrativo Português; Princípios de Administração” (artº 1º). Tendo em conta os objetivos a que se destina, este curso é perspetivado como uma espécie de “pós graduação” em conjugação com os estudos superiores, como se depreende dos articulados que preveem a admissão de alunos oriundos das escolas politécnicas de Lisboa e do Porto que apresentassem documentos comprovativos de aprovação nas disciplinas de Filosofia Natural (art. 6.º) e dos alunos das Faculdades de Direito e de Filosofia, aos quais se autorizava a frequência e conclusão dos estudos no espaço de dois anos (art.7.º).
Se inicialmente o curso parece ter ido ao encontro de expectativas existentes, o que explica o elevado nível de candidaturas nos anos 50, a indefinição legislativa quanto à sua inclusão como requisito para o ingresso em, pelo menos, os níveis mais elevados da gestão da administração pública, conduz a uma progressiva redução de interessados, chegando-se, nos anos 80, à situação de existência formal do curso, mas sem candidatos (Ferreira, 2005).
1.3. Os lentes e sua produção pedagógica
É hoje possível, graças ao resultado de um conjunto de investigações que se tem desenvolvido nos últimos anos (Cruzeiro, 1992; Ferreira, 2005), traçar o perfil do professor de direito coimbrão deste período. Assim, e de acordo com a síntese elaborada por Ferreira, “até meados da década de 70 ele é oriundo do distrito de Coimbra, ingressando na carreira cerca de quatro anos após a habilitação a doutor; e é promovido a catedrático no espaço médio de 8 a 10 anos (…). A partir daquela data a proveniência geográfica tornou-se mais fluída, não obstante a relativa predominância dos doutores naturais dos distritos do Norte, e o ingresso no magistério universitário a verificar-se no intervalo de dois anos em relação à data de obtenção do grau de doutor, ocorrendo a promoção a catedrático no intervalo inferior a 8 anos. O professor de Direito usufrui fortes probabilidades de exercer funções políticas como deputado e de desempenhar comissões governamentais e/ou parlamentares de especialidade, sobretudo a partir dos anos 70” (2005, p. 293).
No âmbito das suas funções docentes, a produção do compêndio ou manual da disciplina é uma das atividades que paulatinamente se vai tornando mais efetiva, expressão da “crescente afirmação do polo intelectual e científico que desagua na consolidação do traçado da produção científica como marca emblemática da carreira docente” (Ferreira, 2005, p. 305). Se na década de 40, esta produção direta dos docentes é ainda incipiente e mantém-se a tradição da publicação das lições pelos alunos, na década de 70 a maioria dos professores publica já manuais e obras relacionadas com a sua atividade docente. Esta produção científica é relevante a vários títulos, mas também porque ela permite uma melhor compreensão da realidade, neste caso administrativa, do país, já que “o professor de Direito, sobretudo quando se identifica a manualização, afirma-se não só como formador de saberes-fazeres, relacionados mais diretamente com o campo jurídico-judicial, mas também como um doutrinador, com os olhos postos tanto na realidade portuguesa, como nos ecos exteriores” (Ferreira, 2005, p. 323)
Os docentes de Direito Administrativo analisados enquadram-se, como se verá a seguir, completamente dentro deste perfil.
Basílio Alberto de Sousa Pinto nasceu a 16/03/1793 em Fundais (atual concelho de Cinfães) e faleceu em Coimbra em 16/12/1881. Doutor em Leis em 1817, é jubilado como lente de Prima por decreto de 6/12/1860. Ator convicto no processo de mudança de regime participou na Revolução de 1820, foi deputado pelo Porto às Cortes Constituintes e participou ativamente na redação da Constituição de 1822.
Esta adesão à causa liberal valeu-lhe a deportação durante o consulado de D. Miguel. Volta à Universidade em 1834 e tendo sido nomeado Lente de Leis por Dec. 02/06/1834, transita para a recém-criada Faculdade de Direito em 1837. A sua atividade docente desenvolveu-se por várias cadeiras, desde história do Direito, Sintética da Prática e Direito Criminal, onde se incluíam as matérias de Direito Administrativo. Ao longo da vida académica desempenhou vários cargos relevantes na Universidade, desde Fiscal da Fazenda e Estado da Universidade, Deputado da Junta da Fazenda da Universidade, Diretor da Faculdade de Direito e finalmente Reitor da Universidade de 7/04/1859 a 22/07/1863.
A nível político, ocupou também diversos cargos, como Diretor-geral do Ensino Primário e Secundário (1842), vogal da mesma Direcção-Geral (1845), Vice-Presidente do Conselho Superior de Instrução Pública, e Conselheiro de S.M. Em 1862 foi agraciado com o título de Visconde de São Jerónimo (Dec. de 05/11).
Ainda em plena tradição da edição/publicação das aulas por estudantes, são dadas à estampa respetivamente em 1849 e 1861 os Apontamentos de Direito Administrativo com referência ao Código Administrativo Português de 18 de Março de 1842, redigidos segundo as preleções orais do ilustríssimo senhor Basílio Alberto de Sousa Pinto feitas no ano de 1844 a 1845, compilados por Lopo José Dias de Carvalho e Francisco de Albuquerque Couto; e as Lições de Direito Criminal Portuguez redigidas segundo as preleções oraes do excelentíssimo Senhor Basílio Alberto de Sousa Pinto, compiladas por A. M. Seabra de Albuquerque.
Os Apontamentos estão divididos em três partes: uma introdutória, sobretudo de caráter histórico, a segunda aborda as questões da divisão do território e dos tribunais administrativos e a última intitulada “Da formação e atribuições dos corpos administrativos”, mas que verdadeiramente trata apenas das câmaras municipais.
Justino António de Freitas nasceu no Funchal (Madeira) a 17/09/1804. Faleceu em Lisboa em 28/11/1865. Doutorou-se em Leis em 1837 e em 1840 é nomeado Lente substituto, ascendendo à cátedra em 1852. No ano seguinte é nomeado lente de Direito Administrativo, mas a sua docência efetiva é bastante episódica, sendo substituído por Bernardo Serpa Pimental nos seus prolongados períodos de ausência para o desempenho de cargos políticos.
A sua intervenção política começa nos anos 40, tendo integrado a comissão preparatória da Junta do Governo em 1846, da qual vem, aliás, a fazer parte com o seu cunhado António Joaquim Barjona e o seu colega Francisco Duarte Nazareth. Adepto da Regeneração despenhará vários cargos de confiança política entre os quais o de Vogal do Conselho Superior de Instrução Pública e a partir de 1856 é deputado em várias legislaturas.
Para a lecionação da recém-criada cadeira de Direito Administrativo, o Conselho da Faculdade adoptou interinamente para manual o recentíssimo Manuel de Droit Administratif de Emile Vavulliers, mas logo no ano seguinte o substituiu pelo Précis de Droit Administratif de P. Pradier-Fodéré, que por sua vez foi abandonado, deliberando-se que o professor da cadeira ensinasse pelo Código Administrativo ou como melhor entendesse. Justino de Freitas tomou então a seu cargo a redação de um manual – Instituições de Direito Administrativo, com uma primeira edição em 1857 e uma segunda em 1861 – pelo qual foi autorizado a ler, e que foi o compêndio adoptado para o ensino deste ramo de direito durante o resto deste período. O compêndio continha, de resto, apenas a “ primeira parte” do programa – “princípios gerais de direito administrativo e de administração local” -, prometendo o autor tratar, na segunda parte, da administração geral. Para além desta, Justino Freitas publicou outras obras na área tais como o Manual do rendeiro… de 1849 e o Manual dos juízes eleitos e seus escrivãos, de 1851
José Frederico Laranjo nasceu em Castelo de Vide a 20/11/1846 e veio a morrer em Lisboa em 1910. Matriculou-se em Direito a 14/10/1870 e doutorou-se em Leis em 15/07/1877. Despachado professor substituto por Dec. de 3/01/1878, ano em que é, também, nomeado Secretário da Faculdade de Direito, dá início à sua carreira docente. Em 1886 ascende à Cátedra.
No entanto, e ao longo da maior parte da sua vida, não foi a docência académica que mais o seduziu, mas sim o mundo da política, tendo militado ativamente no Partido Progressista. No mesmo ano em que ascendeu ao professorado, resgatou uma cadeira em S. Bento, vindo a ser Deputado por Portalegre durante cerca de duas décadas.
Em 1888 é dada à estampa a primeira edição do seu manual Princípios e Instituições de Direito Administrativo Português, que conhecerá uma segunda edição em 1894. A obra, ao contrário das anteriores, não dedica qualquer parte específica ao poder local, assunto que eventualmente poderia ser objeto de um segundo volume, mas sobre o qual não há notícia que tenha estado na intenção do autor. Assim, trata-se de um manual que discute, como sugere o seu título, os princípios gerais da administração do Estado e se espraia pela estrutura da administração central.
Para além dos Princípios, a obra de Frederico Laranjo é relativamente diversificada e vai desde a poesia (Estro nocturno: poesias diversas, de 1866) até uma variadíssima oratória, passando pela celebrada Theoria geral da imigração: dissertação inaugural para o ato de conclusões magnas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de 1877
Na generalidade, a produção deste docentes revela a predominância do pensamento francês, exclusiva nos primeiros manuais, com autores como Tocqueville e mais particularmente Bonin, para integrar já no final do século contributos ingleses e alemães.
- O poder local no pensamento dos lentes da Universidade de Coimbra
2.1. Basílio Alberto de Sousa Pinto
Para Basílio de Sousa Pinto o poder municipal tem uma natureza própria, não confundível, portanto, nem assimilável ou submergível por outro tipo de poderes, nomeadamente o poder central. Esta natureza própria traduz-se no facto de ele ser “natural”, essa naturalidade emerge da dinâmica de construção social das comunidades, a qual exige a coordenação e gestão das relações que forçosamente se estabelecem entre as suas células básicas, as famílias. Nas suas próprias palavras: “Constituída assim uma e mais famílias, elas naturalmente se relacionarão entre si (…) e por isso se formam assim grupos de famílias. Como porém estes grupos tenham interesses, negócios e relações sociais, que seja necessário regular, é forçoso que haja um centro, um Governo, a quem todos obedeçam, aliás dar-se-á um estado de anarquia. Por tanto, a escolha de um governo para tal sociedade é natural (…) Este governo por tanto é o municipal, estabelecido sem o tato do homem, mas por necessidade de sua natureza: é a segunda sociedade natural” (p. 44-45).
Sendo assim, se o homem é fundamentalmente um ser social (“tende para a sociedade: que é o seu estado natural, fora do qual não pode subsistir”, como afirma o A.), se a família é a primeira agregação que surge dessa natureza social do homem e se é fundamental regular a relação entre essas famílias, então o poder que emerge desta circunstância é não só natural, mas a sua fonte é o povo, embora este seja entendido de forma reducionista, donde a rejeição do sufrágio universal. Identificando o que considera serem defeitos da legislação de Mouzinho da Silveira, o A. escreve a este propósito: “O 3.º defeito era não se achar em toda a sua pureza o Poder Municipal, que, como vimos, é um dos principais elementos da Administração. O Provedor era o Presidente das Câmaras; e por tanto, é claro, que sendo ele de nomeação régia, não podia satisfazer as condições da municipalidade, que é essencialmente popular” (p. 13).
Desta forma, mais do que um racional argumentativo de natureza historicista, que, no entanto, o A. não deixa de invocar, são considerações de natureza sociológica que assume como fundamento da sua visão sobre o que é o poder municipal.
No entanto, a gestão do todo nacional exige um governo central forte, pela necessidade de ultrapassar o nível dos interesses locais e harmonizá-los com os interesses gerais, mas também para garantir o exercício da liberdade. Assim, “para a liberdade se sustentar, requer-se um governo forte” (p. 15). Mas mais do que uma submissão da liberdade ao poder, propõe-se uma espécie de equilíbrio entre o exercício da liberdade e do poder, no qual o município desempenha o importante papel de “ser uma garantia da liberdade” (p. 49). Este equilíbrio entre Poder e Liberdade deve estar presente em toda a organização administrativa do território, por exemplo, no que diz respeito à sua divisão, onde se deve traduzir em “aliar o poder com a liberdade, e (…) não cair nos excessos opostos de o localizar ou centralizar muito” (p. 29). De facto, como já assinalou Ferreira, “é à luz da história e conflito entre o princípio do poder e o princípio da liberdade que é perspetivado o sistema da administração” (2005, p. 323)
O município surge então aqui como uma espécie de contraponto a um certo exercício do poder pelo governo central que, ao ter que se posicionar para além dos interesses locais a fim de regular a sociedade, não pode, no seu campo de atuação, dar espaço para o exercício dessa liberdade.
Não obstante, e apesar de garantir o exercício da liberdade, o poder municipal desempenha dois outros papéis, de alguma forma operacionais, para a sustentação do governo central. Em primeiro lugar, uma das condições de sustentação do poder é ter uma força moral que é ganha através da confiança dos povos (p. 17) e é neste sentido que o município serve para “dar força física e moral ao governo” (p.48). No entanto, a confiança dos povos no governo central não é suficiente para assegurar o exercício do poder. É necessária uma aprendizagem social da obediência política, algo que não é inato ao homem; pelo contrário, o que é inato é a recusa em obedecer. Assim, “constituída a sociedade civil conheceu-se, que não era possível prescindir das famílias e municípios, por isso que sem o seu auxílio o governo central não podia operar, por que o homem tem grande repugnância em se sujeitar a obedecer ao governo, e só o faz-pela convicção da necessidade da associação, ou pelo hábito (…)” (p.45).
Desta forma, o município desempenha o papel de “escola de obediência política” (p. 49) no processo de uma espécie de necessária formação do cidadão liberal que o deve “ensinar” a exercer a liberdade, provavelmente mais entendida como forma de exprimir tradições e particularidades locais do que como exercício de liberdade individual, mas também de obedecer ao governo, ferramenta essencial para um exercício eficiente e eficaz do poder. Mas esta obediência não é forçada por um poder tirano, ela é um resultado da confiança que os povos nele depositam, o que adiciona uma fundamentação ética ao exercício do poder. Dir-se-ia que se os cidadãos confiam no governo, então esta confiança confere-lhe um poder moral que lhe permite o exercício do poder na condição complementar que estes saibam obedecer.
É, por conseguinte, no quadro desta oposição Poder/Liberdade que deve ser entendido o papel que o A. reserva aos agentes locais do poder. Os administradores de concelho são os executores das ordens e das políticas centrais a nível local. Como funcionários únicos, representantes e nomeados pelo governo, eles farão tendencialmente “preponderar o poder em prejuízo da liberdade” e “como são singulares, terão mais precipitação em seus atos, maior facilidade para abusarem, e além disto poderão não atender devidamente aos interesses locais” (p. 34). Sendo assim, se bem que necessário como forma de executar localmente as politicas nacionais e exercer o poder delegado, a existência do Administrador do Concelho apresenta dois tipos de problemas: por um lado, não gere tendo em conta os interesses locais, por outro, o exercício desse poder sem controle gera fenómenos de ineficiência e de abuso de poder. No contexto desta argumentação não é de estranhar que, como refere o A., se imponha uma “consequência óbvia, que é o reconhecer a necessidade de um elemento, que contrabalance os efeitos deste poder” (p. 34).
O poder municipal, cuja legitimidade lhe advém do voto popular, atua assim como uma espécie de contraponto do poder central, sem ser necessariamente um opositor. Desta forma e nas palavras do A. as funções do poder municipal, enquanto corpo eletivo onde se podem confrontar diversas perspetivas e ponderar as mais adequadas soluções sem a precipitação própria da ação imediata, ao contrário do que acontece no caso do Administrador do Concelho, são: “1. aconselhar o magistrado singular; 2. rebatê-lo quando quiser abusar: 3. fiscalizar seu procedimento, e representar os interesses da localidade, ou dos povos” (p. 35). Desta forma, na relação com o poder central, o poder municipal desempenha dois tipos de funções: aconselhamento e fiscalização do funcionário delegado e defensor dos interesses locais, concretizando assim a defesa das liberdades locais. Olhando a questão do ponto de vista do poder municipal, a função do Administrador do Concelho é meramente consultiva, sendo este papel valorizado pelo A., sobretudo em confronto com a figura do Provedor: “por isso, o Código, sem cair em tal inconveniente, dando entrada na Câmara com voto consultivo ao Administrador do Concelho, que substituía o Provedor; por isso que pode ajudar muito a Câmara, e o Conselho Municipal, com suas informações” (p. 82).
Embora reconhecendo que o CA de 1842 representa a concretização mais equilibrada deste racional, até porque finalmente definiu com clareza a separação de poderes, o A. não deixa de criticar o Código de dois pontos de vista, um conceptual, outro operacional. Em primeiro lugar, não se trata de um verdadeiro código administrativo porque estão ausentes os princípios e leis gerais dispersos por legislação avulsa. No entanto, pior que esta realidade é o facto dessa produção legislativa não ter “nem ordem nem sistema”, o que produz vários efeitos nefastos. Nas palavras de Basílio de Sousa Pinto: “O resultado é não poder conhecer-se tal legislação. Se nela houvesse sistema, o homem de ciência debaixo de um princípio podia compreender mil espécies; assim, nada pode fazer. Melhor a conhece em tal estado o amanuense de secretaria, porque vai apontando no seu canhanho as decisões das espécies que vão saindo, sem lhe importar com os princípios” (p. 19). A inexistência de funcionários formados neste domínio constituí o óbice operacional mais relevante, o que justifica a avaliação de estarmos ainda a “uma grande distância para chegarmos à perfectibilidade” (p. 16).
2.2. Justino António de Freitas
Embora em certos aspetos na mesma linha de Basílio de Sousa Pinto, a obra de Justino António de Freitas parece mostrar um pensamento menos desenvolvido, o que já conduziu Marcelo Caetano a firmar que o livro não passa “duma correta e seca descrição da organização administrativa do nosso país, segundo as leis ao tempo vigente” (Caetano e Amaral, 2001, p. 57).
De qualquer forma, Justino de Freitas parte de uma concepção semelhante de município enquanto forma de organização natural na sociedade, que resulta “da agregação de famílias congéneres, constituída sobre si, para, por meio dos seus chefes naturais velarem por seus interesses próprios, pela sua conservação e aperfeiçoamento moral” (p. 14-15). Sendo assim, “a comuna está, como a família, antes do Estado” (p. 14). Esta anterioridade tem uma dimensão histórica que o A. situa na Idade Média, ao escrever que “a meia idade, que é um resultado da fusão do elemento germânico com a religião cristã (…) apresenta em si um dos maiores elementos da administração, destinado a ser no futuro a maior garantia de prosperidade e o mais sólido fundamento da ordem social. Falamos dos municípios” (p. X). Esta junção dos argumentos naturalistas e historicistas constitui, aliás, o fundamento do pensamento anti-centralizador que caracteriza grande parte do pensamento oitocentista sobre o municipalismo. Particularmente o elemento historicista “pretendia mostrar que o tempo tinha dado especificidade e concretude a uma exigência da natureza e eleger como paradigma (…) o momento em que a natureza e a história melhor se tinham fundido: a Idade Média” (Catroga, 2004, p. 415).
Mas neste contexto, os municípios são não apenas entidades sociais anteriores a todas as outras, donde lhes advém a legitimidade para existir, como também garantes da ordem e do progresso. Essa importância advém-lhes na contemporaneidade liberal de uma nova concepção que os perspetiva como “uma espécie de escola pública, onde o homem se prepara para a vida política, como se tem preparado pela educação doméstica para a comunal” (p. 210).
Embora os municípios sejam considerados como agremiações de famílias organizadas para defender os seus interesses, o A. não deixa de considerar que essa agregação deve ser objeto de “uma direção especial debaixo da tutela do governo, dentro de uma certa área do território, que forma a mais pequena circunscrição da divisão territorial administrativa” (p. 205-206). Parece existir, portanto, uma clara subordinação do poder local ao poder central, porque para o A. “a unidade governamental deve ser colocada acima da liberdade comunal” (p. 210).
Não obstante, não pode afirmar-se que no pensamento de Justino de Freitas as especificidades locais sejam completamente anuladas e dissolvidas nos interesses gerais; pelo contrário, aquilo que ele identifica como a concepção liberal dos municípios compõem-se também do reconhecimento de que “o problema a resolver consiste na conciliação dos direitos municipais com os direitos do governo, em que tudo se confunde” (p. 210).
A vertente subordinação do poder local à tutela do poder central reaparece de forma mais desenvolvida quando o A. se refere explicitamente aos órgãos de governo local. Assim, a Câmara Municipal é “o conselho eletivo, que regula e administra tudo o que toca aos interesses do município, debaixo da tutela do Governo, e que está ao lado do administrador do concelho para o ajudar e esclarecer no que for próprio do poder municipal, e da administração geral” (p. 206-207). Se a função da Câmara Municipal parece ser apenas a de apoio do representante do poder central, o pensamento do A. parece oscilar ou mesmo contradizer-se, já que noutro passo reconhece que esta é dotada de uma autoridade própria cujo campo de ação é constituído por determinados aspetos da vida local. Leiam-se as suas palavras: “ao lado do Administrador do Concelho está a Câmara Municipal, de eleição popular, (…) que serve para esclarecer a administração ativa com seus conselhos (…); que é chamada a deliberar em alguns casos (…); e que, como gerente dos interesses de todo o município, regula, em virtude de autoridade própria, os objetos de interesse peculiar do mesmo município” (p. 21).
No entanto, a chave para a compreensão do pensamento do A. parece estar na sua concepção de Administração Ideal: “Um agente único para a execução, um conselho colocado a seu lado para o esclarecer, uma vigia contínua e geral exercida pelo juízo contencioso para assegurar o respeito à lei e aos interesses privados – tais as bases de uma boa organização administrativa” (p. 17). É esta organização que permite assegurar, na construção da pirâmide de níveis administrativos que vão desde o chefe de estado à mais pequena circunscrição administrativa, o princípio da unidade na ação. É também daqui que decorre a natureza e o papel que o Administrador do Concelho deve desempenhar. Para o A., ele é “um magistrado nomeado por decreto do Rei, colocado à testa do município para fazer executar todas as medidas da administração geral e exercer todas as funções de administração local no interesse do município” (p. 163). Uma leitura imediata destas palavras poderia levar à conclusão de que todo o poder se encontra nas mãos do Administrador do Concelho. No entanto, “as Câmaras têm uma administração independente, e aonde os agentes ativos superiores não exercem senão funções de inspeção e de tutela” (p. 164). Sendo assim, parece poder concluir-se pela existência, de facto, de uma esfera própria do poder municipal que, apesar de fiscalizada e tutelada pelo agente do poder central, não deixa de se diferenciar da que pertence a este último.
Estas aparentes oscilações podem ser melhor compreendidas através da diferença que o A., na esteira de outros que não identifica (embora se reconheça a influência de Tocqueville), estabelece entre centralização política e centralização administrativa, devendo esta última pautar-se pela moderação, porque “se a centralização é exagerada produz o despotismo; se é moderada produz a liberdade; se é nenhuma, a dissolução social” (p. 23). O nível de centralização / descentralização administrativa é assim uma questão de grau que deve ser determinado tendo em contas as características de uma determinada sociedade (p. 25-26). Ora, para o A., o caso nacional é o exemplo de um grau de centralização moderado, já que “geralmente predomina no nosso Código Administrativo o princípio da centralização governamental, e da quase nenhuma centralização administrativa; porque as câmaras municipais obram numa esfera de ação bastante livre, e o Governo não exercita sobre elas senão os direitos de inspeção e de tutela, para vigiar que não exorbitem os seus deveres” (p. 26). Sendo assim, o Administrador do Concelho parece ser o garante da unidade política na ação, mas as câmaras municipais tem um domínio de ação próprio.
2.3. José Frederico Laranjo
É na discussão das questões relativas à centralização / descentralização (parágrafos 19 a 23) que é possível descortinar alguns dos traços do pensamento do A. relativamente ao tema do poder local.
Partindo dos conceitos de centralização, entendida como a concentração no governo central de todos os domínios em que o poder pode ser exercido, mesmo os que têm uma maior incidência local; e descentralização, entendida como o exercício inspecionado de atribuições de âmbito local, e distinguindo deste último o de desconcentração, o A. discute, carreando diversas contribuições, vantagens e desvantagens, para concluir, em primeiro lugar, pela inexistência de absolutos. Sendo assim, centralização e descentralização são uma “questão de graus, de proporções entre a quantidade de funções sociais que se devem subordinar a um centro e as que se devem deixar sem essa subordinação” (p. 39).
Recuperando o conceito de Tocqueville dos dois tipos de centralização – política e administrativa – conclui pela vantagem da existência da primeira porque “é necessária para dar ao conjunto da nação força, energia e igualdade de direitos” (p. 42). As questões concentram-se então na dimensão administrativa.
A tendência para uma maior ou menor centralização / descentralização administrativa encontra raízes na história, na dimensão da propriedade fundiária e em circunstâncias específicas de um dado momento. Assim, naqueles países em que “as tradições do império romano foram mais vivas, em que a guerra obrigou à concentração de forças e em que a propriedade está mais dividida, há também nos factos e nas teorias uma tendência para a centralização” (p. 42). O peso desta história é relevante, mas não absolutamente determinístico. De facto, se “é verdade que as nações da raça latina são menos próprias para a descentralização; é verdade que não podem trocar por outra a sua história, nem substituir o seu regímen de propriedade da terra concentrada em poucos” (p. 47), é igualmente verdade que “a concentração da propriedade não é indispensável para a descentralização; e as tendências e costumes modificam-se por muitos modos e pela própria lei” (p. 48).
A vantagem de ultrapassar este peso da história está diretamente relacionada com a avaliação positiva que o A. faz de, pelo menos, um certo nível de descentralização desde que assegurado um justo equilíbrio entre as liberdades locais e a gestão dos interesses nacionais. Por isso, “os corpos administrativos devem pois ter uma descentralização tal, que nem oprima os indivíduos, nem embarace o Estado, nem prejudique as povoações que representam; toda a função que se lhes poder dar sem se produzir algum destes resultados deve pertencer-lhes e atribuir-se-lhes” (p. 45). Mesmo tendo em conta que determinadas funções económicas, por razões de eficiência e eficácia, devem ser desempenhadas pelo Estado, daqui não decorre a sua necessária centralização, porque “para uma função ser social não é preciso que pertença ao Estado; basta que lhe pertença a ele ou a qualquer das agregações jurídicas locais (…); e estas funções devem atribuir-se ao Estado ou aos corpos administrativos conforme a natureza geral ou local” (p. 48).
Ora, considerando a tendência dos povos latinos para a centralização, como operar esta mudança? Em primeiro lugar, trata-se de encontrar um justo equilíbrio entre as funções centralizáveis e descentralizáveis e “combinar numa justa relação o Estado, as frações do Estado, a mais natural das quais é a comuna, e o indivíduo” (p. 44); em segundo lugar, é necessário que o processo de transformação seja gradual, porque “o que é preciso é que não se exijam grandes e rápidas transformações” (p. 48).
O elenco das funções descentralizáveis recebe uma gradação que vai desde aquelas que devem ser mesmo descentralizadas, até graus de conveniência de centralização / descentralização. No primeiro caso está o que o A. designa como a função moral ou de auxílio, “porque é nas localidades que se conhecem os verdadeiros pobres, os males que precisam de socorro” (pp. 52-53). Nos outros casos encontram-se a função económica e a de instrução e iniciativa. A função económica, ou seja, a gestão financeira, que inclui a cobrança de impostos, é aquela em que uma partilha de atribuições pode ser mais equitativa, porque se se devem descentralizar receitas e despesas e se os impostos locais constituem uma das fontes fundamentais dessa receita, “é necessário que o Estado determine a natureza, o modo de distribuição, e o máximo dos impostos locais para os harmonizar uns com os outros e com os do Estado” (p. 52).
As vantagens de um certo grau de descentralização refletem-se igualmente na determinação das formas de divisão do território, na procura de um equilíbrio entre respeito pelas tradições e condições do exercício do poder. Efetivamente, o problema está para o A., em “encontrar um sistema que concilie o respeito pela autonomia das localidades a que não desapareçam as condições de vida em que essa autonomia se baseava com a organização de circunscrições que tenham os meios e as aptidões necessárias para se lhes poderem confiar as funções administrativas que por sua natureza se devem descentralizar” (p. 60). Este equilíbrio consegue pela categorização dos municipais em urbanos e rurais, dotados de uma diferente extensão de atribuições.
Conclusões
A emergência do Direito Administrativo no quadro do ensino universitário português no século XIX é tardia, acidentada e decorre no confronto de duas perspetivas relativamente antagónicas: uma, a da Universidade de Coimbra, tendente a privilegiar os saberes transversais ao campo jurídico e, portanto, a privilegiar temáticas estabelecidas e a qual só a muito custo admitirá a cidadania deste saber; e outra, mais operacional, com origem na esfera política, que o perspetiva como operativo em termos do saber e das competências necessárias à criação de um quadro de funcionalismo necessário para a construção do Estado Liberal.
No entanto, nem um nem outro agente parecem ter sido consequentes na clara assunção das suas perspetivas. A Universidade, que parece paulatinamente admitir a importância deste ramo do Direito, nunca apostará ou apostará pouco na sua importância estratégica no contexto da construção e desenvolvimento do Estado Liberal. Ainda neste contexto e do lado dos docentes, a dinâmica política do século XIX e o papel que estes podiam desempenhar afasta-os bastante de uma docência efetiva e prolongada no tempo. Do lado da esfera política, por seu turno, a irresolúvel contradição entre querer formar novos quadros administrativos e a indecisão na valorização dessa formação para a criação de, pelo menos, uma elite administrativa liberal, esvaziará o papel estratégico que este ramo do Direito poderia ter desempenhado. Relembre-se a este propósito as considerações de Basílio de Sousa Pinto, logo no final da primeira metade do século, sobre a importância do desempenho dos cargos administrativos por indivíduos com conhecimentos específicos, condição sine qua non da melhoria da qualidade da administração.
Parece poder, assim, concluir-se que nem do ponto de vista científico, nem do ponto de vista do Estado foram criadas as condições para que o Direito Administrativo, neste período, assumisse uma importância relevante, o que provavelmente ajuda a explicar o pouco desenvolvimento conceptual do discurso dos lentes nos seus manuais, excetuando o caso de José Frederico Laranjo, embora o assunto poder local seja pouco desenvolvido. O nível do discurso está muito próximo da prática, dos códigos administrativos, do que de uma conceptualização de nível superior, de que o exemplo paradigmático é Justino de Freitas, o primeiro lente da cadeira. Esta proximidade da prática pode também ser explicada pela necessidade de formar profissionais.
De qualquer forma, os textos analisados revelam uma determinada conceptualização, em primeiro lugar, do que é o município, da sua esfera de competências e poder e da forma como este nível da administração se relaciona com outros.
Em primeiro lugar, fica claro que é de um racional jusnaturalista e histórico que estes partem para responder à questão básica da justificação da existência dos municípios. Embora estes argumentos tendencialmente se conjuguem, eles ganham um peso diverso nos três autores, com a relevância da ausência do argumento jusnaturalista no caso de Frederico Laranjo.
Deste racional argumentativo decorrem várias consequências. A anterioridade do município face ao Estado (entendido como Estado Central), como forma de organizar e regular as relações sociais num determinado espaço, destrói completamente qualquer possibilidade de este ser submerso por aquele, parece até conferir-lhe um enraizamento que jamais será alcançado pelo Estado. Por outro lado, se os municípios existem de per si como resultado de dinâmicas sociais próprias, então têm uma esfera de atuação própria. Qual seja esta esfera de atuação é de difícil clarificação pelos autores. Para Basílio de Sousa Pinto essa esfera de atuação, que nunca chega a definir com precisão, decorre da forma como conceptualiza as funções do município no todo nacional no contexto da oposição entre Poder e Liberdade. Já Frederico Laranjo é mais concreto sobre as funções descentralizáveis para o município, embora não seja possível apenas por esta definição saber se aqui se esgotam as atribuições do município. Neste sentido, o confronto entre o pensamento de Laranjo e dos outros dois autores sofre sempre da diferença de tratamento do assunto poder local. No entanto, realce-se neste autor a assunção de um racional de eficácia para a descentralização, traduzido na ideia de que os municípios serão mais eficazes na concretização de determinadas funções do Estado do que o poder central, mesmo se desconcentrado.
No entanto, ao contrário do que o parágrafo anterior poderia fazer crer, nenhum destes homens conceptualiza o poder municipal como independente do poder central, bem pelo contrário. Enquanto o poder local tem uma justificação natural, o poder central tem, pode classificar-se, uma justificação funcional, que é genericamente a de garantir a gestão do todo nacional, ultrapassando as particularidades locais. Portanto, ao nível local é perfeitamente lógico, nesta conceção, que existam dois tipos de agentes que corporizam a concretização das diferentes funções. A forma como é entendida a relação entre estes agentes concretiza o entendimento sobre a hierarquia dos poderes. Se para Basilio Pinto, o Administrador do Concelho desempenha face à Câmara Municipal sobretudo funções de aconselhamento, já para Justino de Freitas parece ser mais clara a subordinação do executivo municipal. Estas ligeiras diferenças ficam fundamentalmente a dever-se ao facto de nenhum dos autores ser claramente a favor da descentralização ou da centralização.
Em síntese, pode afirmar-se que o pensamento destes autores é sobretudo atravessado por uma corrente de algum anti-centralismo, que parte sempre do princípio que os municípios são uma entidade administrativa de parte inteira no edifício institucional do país, embora na gestão do território submetidos ao poder central nos domínios de competência deste. A esta dependência deve adicionar-se a tutela e fiscalização de determinadas competências do poder local, numa nunca confessada menorização dos agentes locais. A diferente intensidade desta dependência depende da forma como é visto o binómio centralização / descentralização: não há absolutos, é uma questão de grau.
FONTES:
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PINTO, Basílio Alberto de Sousa; CARVALHO, Lopo José Dias de; COUTO, Francisco de Albuquerque – Apontamentos de Direito Administrativo com referência ao Código Administrativo Português de 18 de Março de 1842, redigidos segundo as preleções orais do ilustríssimo senhor Basílio Alberto de Sousa Pinto feitas no ano de 1844 a 1845. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1849.
Disponível em WWW: http://www.fd.unl.pt/anexos/investigacao/1950.pdf
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FERREIRA, Fátima Moura – A institucionalização do saber jurídico na monarquia constitucional: a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1834-1910). Braga: Universidade do Minho, 2005. 2º vol’s. [Tese de Doutoramento]
Disponível em WWW: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/23563
OLIVEIRA, Luís Cabral – Ficha bio-bibliográfica de Basílio Alberto de Sousa Pinto. Disponível em WWW:
http://www.fd.unl.pt/ConteudosAreasDetalhe_DT.asp?I=1&ID=971
OLIVEIRA, Luís Cabral – Ficha bio-bibliográfica de Frederico Laranjo. Disponível em WWW: http://www.fd.unl.pt/ConteudosAreasDetalhe_DT.asp?I=1&ID=1072
COMO CITAR ESTE TEXTO:
LEITÃO, Paulo – As concepções sobre o poder local no discurso administrativo português do Liberalismo na segunda metade do século XIX: os lentes da Universidade de Coimbra. 2016. Disponível em: